História, meio ambiente e cultura:
a contribuição teórica de Fernand Braudel


Luís Corrêa Lima1



Resumo:



O historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), um dos mais importantes de sua geração, é bastante conhecido por sua obra sobre o Mediterrâneo do século XVI e por sua história mundial da vida material e do capitalismo. Ele buscava uma história globalizante, uma explicação de totalidade que abrangesse todos os aspectos relativos ao seu objeto, articulando mudanças e permanências, o que muda e o que não muda. Sua pesquisa recorria a outras ciências, como a geografia, a sociologia, a economia e a antropologia, a fim de construir pela historiografia uma explicação o mais abrangente possível. Braudel nunca foi propriamente um ambientalista e nem foi considerado como tal, no entanto a sua obra possui um forte enraizamento geográfico e ambiental, e notáveis incursões no domínio da cultura, de tal maneira que a explicitação e a sistematização desses conteúdos constituem uma valiosa contribuição para os estudos sócio-ambientais e culturais.

Palavras-chave: geo-história, civilização, longa duração, meio ambiente, desenvolvimento sustentável.


Abstract:


The french historian Fernand Braudel (1902-1985), one of the most important of his generation, is quite known for his work about the Mediterranean of the XVI century and for his world history of material life and capitalism. He looked for a globalizing history, na explanation of totality which covered all the aspects related to its object, articulating changes and maintanances, what changes and what does not. His research referred to other sciences like geography, sociology, economics, anthropology, in order to constructit the most wide-ranging possible. Braudel was never necessarily na environmentalist and was never considered as such, however his work hás a strong geographical and environmental basis, and remarkable passages in the domain of culture, in such a way that his explications and systemization of these contents, constitute a valuable contribution for the sócio-evironmental and cultural studies.

Key words: geo-history, civilization, long duration, environment, sustainable development.


1 Os estudos sócio-ambientais e culturais


        A questão ambiental é relativamente recente. Na segunda metade do século XX, a humanidade expandiu seis vezes a sua economia, fato absolutamente inédito em toda a história. Nos últimos 25 anos, a população cresceu mais de dois bilhões de habitantes. Isto coloca novos problemas e perspectivas, novas questões e urgências. Os limites do planeta e dos recursos naturais se tornaram mais próximos.

        A isto se somam as disparidades de produção e consumo dos países ricos e pobres. As nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que engloba mais de vinte países ricos, totalizam 21% da população e ocupam 24% das terras do planeta. Elas respondem por 72% do produto mundial bruto, 73% do comércio internacional, 75% do consumo de energia, 75% dos metais utilizados e possuem 78% de todos os veículos. A cada ano consomem cerca de 90% da produção mineral mundial dos metais mais usados – ferro, alumínio e cobre – e 76% da madeira comercializada. O europeu utiliza em média 10 a 30 vezes mais energia comercial que o habitante de um país em desenvolvimento, enquanto que o norte-americano consome cerca de 25 vezes mais energia que o indiano e 103 vezes mais que o cidadão de Bangladesh2 .

        O ciclo de vida de uma mercadoria é muito maior para a ecologia do que para a economia. Para um economista, a existência de um automóvel começa com a exploração do minério de ferro e pode terminar quando o produto é pago e sai da revendedora. A partir daí, ele apenas fará parte de estatísticas. Paralelamente, o ciclo da gasolina se encerra no tanque de algum veículo. Para o ambientalista, entretanto, a vida de um automóvel prossegue ao longo de sua utilização, nas vias pavimentadas para o tráfego, na sua transformação em sucata, na sua permanência na paisagem por muitos anos e, finalmente, na disposição das partes não aproveitadas em aterro sanitário. Tudo isto com os respectivos impactos ambientais. O ciclo da gasolina iniciou-se muitos milhões de anos antes com a decomposição de plantas e animais, e continua através das emissões de poluentes da sua combustão, culminando com os efeitos nas florestas, no clima global e na saúde das pessoas.

        Há uma dependência dos sistemas econômicos em relação aos sistemas naturais que tornam possível a vida na Terra. Novos valores devem ser assimilados para uma complementaridade satisfatória entre o capital natural e o capital feito pelo homem. Há sinais que apontam nesta direção. Na sociedade brasileira, a dicotomia entre o social e o ambiental era uma realidade concreta muito presente há 40 anos. O aparecimento dos movimentos ambientalistas, a incorporação do meio ambiente nos programas políticos, o crescimento de organizações não-governamentais, a universalização das informações dos processos de devastação e dos crimes cometidos contra a natureza, a criação, ampliação e aperfeiçoamento de leis ambientais, entre outras coisas, são fatores fundamentais na tomada de consciência dos problemas ambientais e de suas implicações na própria sociedade.

        Houve também uma internacionalização solidária das questões ambientais, ainda que com risco de se enfraquecer. A reflexão ética se volta para o meio ambiente. Atualmente, há ricas referências bibliográficas sobre o assunto, onde é possível distinguir duas racionalidades a respeito da questão ambiental. Uma, marcada pela dimensão quantitativa, técnica e operacional, com forte acento no poder econômico; outra, preocupada com aspectos qualitativos, culturais e éticos, denominada racionalidade axiológica ou de valores3 .

        Acredita-se que a consolidação do processo de construção de uma ética de solidariedade de alcance universal entre o social e o ambiental é mais forte que as fragilidades das posições isolacionistas; é mais sólida do que os interesses econômicos dos blocos; é mais robusta que o protecionismo transitório, exposto à vulnerabilidade histórica de uma racionalidade consumista e prepotente.

        Em 1983, a ONU criou a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente, com o objetivo de analisar os conflitos entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental e propor soluções. Os resultados foram publicados quatro anos depois, em um livro intitulado Nosso futuro comum, fazendo surgir o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’. Para esta comissão, este tipo de desenvolvimento “é aquele que atende às necessidades do presente sem compormeter a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias”. Uma outra instituição ambiental, a União Mundial pela Conservação da Natureza (UICN), considera desenvolvimento sustentável aquele que contempla a melhoria das comunidades humanas respeitando a capacidade de carga dos ecossistemas. Portanto ele não deve pôr em risco a atmosfera, a água e o solo, preservando o que for fundamental à vida na Terra. Esta forma de desenvolvimento não pode se basear no crescimento econômico permanente.

        No princípio da década de 1990, operava-se com o conceito de desenvolvimento sustentável dando ao termo ‘desenvolvimento’ a capacidade dos países de produzir mais, ligando-o diretamente ao campo da economia. A palavra ‘sustentável’ se referia à preservação, à conservação e à proteção ambiental. Desta maneira, o termo funcionava como um adjetivo de desenvolvimento, que lhe atribuiria a desejável qualidade de incólume à natureza e, portanto, sem apresentar riscos à sobrevivência das gerações futuras.

        O adjetivo ‘sustentável’, no entanto, passou a significar também a proteção contra a insegurança, sobretudo a que ameaça o retorno e a eficiência dos investimentos econômicos, em um mundo frequentemente sujeito à pobreza, às convulvões sociais, ao terrorismo e à guerra. Autoridades econômicas falam de ‘crescimento sustentável’ para se referirem a um crescimento econômico modesto convivendo com juros altos, mas supostamente protegido da alta inflação e de seu poder desestabilizador. Dessa forma, o desenvolvimento sustentável é incorporado à retórica desenvolvimentista, em discursos que pregam o crescimento econômico constante. É um novo instrumento de propaganda para modelos de desenvolvimento que podem ser antigos e danosos. Há risco de que o desenvolvimento sustentável se torne uma quimera.

        Nas duas últimas décadas, o tema da identidade cultural tem sido objeto de atenção crescente dos cientistas sociais4 . Acredita-se que a revalorização e a re-significação de identidades culturais locais possam contribuir para a idéia de sustentabilidade e para uma ética sócio-ambiental de alcance mundial. O fim da guerra fria coincidiu com a emergência de novos conflitos étnico-religiosos, sobretudo nos Balcans, que remetem a antigas disputas. Há formas de pertença e identidade às vezes distintas dos laços nacionais que desempenham um papel relevante nesses conflitos e não podem ser ignoradas.

        Quando a UNESCO se empenhou em propagar uma “cultura internacional da paz”, seus consultores forjaram o conceito de “patrimônio imaterial da humanidade”, que impelia ao reconhecimento e à valorização de formas e conteúdos de incontáveis identidades culturais. Inicialmente este legado foi chamado de ‘intangível’, para opô-lo à idéia de legado materializado, principalmente sob a forma arquitetônica, único que supostamente merecia preservação. Este patrimônio imaterial pode ser fomentado e se tornar fonte de valores não-predatórios da natureza, incentivando concepções de desenvolvimento sustentável.

        No âmbito dos estudos culturais, surgiram importantes trabalhos envolvendo a antropologia e a história, como os de Benedict Anderson, Anthony Giddens, Samuel Huntington e Manuel Castells. Eles procuram entender a natureza dos laços de lealdade e do sentido de pertença que animam as sociedades na entrada do terceiro milênio, no qual o paradigma nacional vem constantemente perdendo relevância e capacidade de promover coesão social.

        As identidades culturais, com seus laços de lealdade e seu sentido de pertança, sustentam redes sociais de solidariedade intracomunais. São redes de diversas naturezas: familiares, religiosas, de vizinhanças e de interesses compartilhados. As redes familiares são as principais responsáveis pelas práticas de proteção física e sobrevivêndcia material. As redes religosas conferem certa legitimação social e oportunidades sociais extra-familiares. As redes de vizinhança atuam nos limites físicos que definem inserções sócio-econômicas e percepções políticas. As redes de interesses compartilhados, por fim, respondem por valores éticos, estéticos, educacionais e comportamentos especiais que vão além dos âmbitos da família, das igrejas e das associações de corte geográfico.

        Cada umas dessas formas de associação identitária possui uma lógica própria de integração entre os seus membros e um código de conduta que garante a sua força como sujeito coletivo, legitima a cada um dos seus membros e define limites desta identidade. Cada tipo de pertença responde por aspectos particulares da existência material, afetiva e espiritual de seus membros5 . No interior destas formas de existir coletivo, a capacidade de ação dos membros será tanto maior, quanto mais estruturados estiverem os liames e os códigos éticos da rede.

        Outra maneira de se classificar as associações identitárias é a adotada por Manuel Castells6 . Elas se dividem em três formas. A primeira delas é a 'identidade legitimadora', cuja origem está ligada às instituições e organizações da sociedade civil, pois elas surgiram e se constituíram em torno do Estado democrático e do contrato social entre capital e trabalho. Dentre elas estão a 'identidade nacional', grupos étnicos ou religiosos, os partidos políticos e as associações sindicais. Foram estas as estruturas que ao final do século 20 mais perderam a sua capacidade de manter vínculos vivos com os valores das pessoas. Esta forma de identidade não tem sido capaz de desenvover práticas renovadoras em termos dos movimentos sociais mais recentes.

        A segunda forma de associação identitária é a chamada 'identidade de resistência', gerada por agentes sociais em posição de exclusão, sob discriminação ou que se sentem ameaçados. Nesta categoria se enquadram muitas formas de militância, como os movimentos feminista, homossexual, ambientalista e pela reforma agrária. Há problemas quando uma destas vertentes de mobilização social se fecha sobre a sua própria rede identitária, ignorando conteúdos e premissas de outras redes correlatas e da teia maior que vai se formando ao seu redor, de modo a limitar a sua própria capacidade de ação e a permitir refluxos indesejados.

        Para garatir a eficácia, as 'identidades de resistência' precisam se transformar em 'identidades de projeto', a terceira forma de associação identitária. Uma 'identidade de projeto' se constrói quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua própria posição na sociedade, a partir de legados culturais a que tiveram acesso. Estes agentes precisam necessariamente ser mobilizadores de símbolos. Para obter sucesso, eles devem se manifestar através dos meios da principal corrente cultural para subvertê-la em benefício de valores alternativos. É preciso dar visibilidade a conteúdos culturais historicamente silenciados, re-significando-os e criando novos símbolos para representá-los.

        As “identidades de resistência” precisam assumir uma estrutura descentralizada e integrada em rede, as chamadas 'redes de mudanças sociais', das quais os movimentos ambientalista e feminista representam bons exemplos. Trata-se de evoluir de uma perspectiva subjetivista e centrada no indivíduo, comum na modernidade, para uma visão de mundo solidária e centrada na cultura.


Braudel, o meio ambiente e a cultura


        A obra de Braudel se liga a um grande movimento renovador da historiografia francesa oriundo da geografia, no fim do século XIX e início do século XX. Este movimento deu origem à chamada nouvelle histoire (nova história), uma historiografia em permanente diálogo interdisciplinar com outras ciências, aglutinada em torno da revista Annales d’histoire économique et sociale, fundada em 1929. Os geógrafos anteciparam a nova história, colocando problemas mais pertinentes a partir do ponto de vista da ciência social, como o da relação entre as sociedades, tomadas em sua evolução, e o meio físico e biológico em que se situam. A geografia abre um grande espaço às economias e às sociedades, recortando o seu objeto de estudo pela definição de um espaço.

        O mais conhecido e influente geógrafo daquela época foi Vidal de la Blache, que escreveu o primeiro tomo da monumental História da França, organizada por Ernest Lavisse, em 1903. O seu interesse comungava com o conjunto da obra, que era fundar um patriotismo e uma espiritualidade secular que legitimasse a República. O seu ponto de partida era o território da França. Como é possível um fragmento de superfície, que não constitui uma unidade geográfica com limites naturais, ter se tornado uma pátria e um Estado? Vidal rompe com o determinismo físico de certa geografia alemã e abre caminhos7 . A geografia vidaliana tratava de grupos sociais em uma duração mais longa, incluindo o presente; ligava os fatos a estruturas, comparando-as, cruzando-as e estabelecendo correlações.

        Os geógrafos ofereceram aos historiadores a inspiração para uma nova concepção do tempo histórico. Os historiadores encontram o espaço, criando um ‘tempo-espaço’, e o tempo histórico perde seu ritmo vertiginoso e efervescente, para ganhar espessura, densidade e lentidão. A partir da geografia humana, Lucien Febvre, Marc Bloch e o próprio Braudel elaboraram uma 'geo-história', que produziu os frutos mais importantes da nova história. O tempo dos homens encontrou o atrito do espaço e a resistência do meio geográfico, obrigando-os a perceber o quanto são localizados, limitados e condicionados por circunstâncias objetivas. Estas não chegam a bloquear todos os seus impulsos, mas oferecem uma resistência suficiente para impedi-los de ‘decolar’, mantendo-os em um ‘chão’8 .

        Nos anos 1940, época da redação de O Mediterrâneo9 , Braudel se apropria dos conceitos da geografia alemã, utilizando suas classificações habituais. Esta geografia elabora uma tríplice divisão: Raum (espaço), Wirtschaft (economia) e Gesellschaft (sociedade). Raum é o meio geográfico físico e biológico, o espaço com todas as suas características físicas, engobando o espaço terrestre, líquido e aéreo; três dimensões do homem com todas as suas possibilidades, riquezas e restrições. Para Braudel, Raum resume um complexo de fatores e de agentes geográficos. Ele permite designar, com uma só palavra, todas as inúmeras forças que fazem o determinismo geográfico e as une em mesmo feixe. Há uma tendência frequente no debate de quebrar o todo, fragmentá-lo, para examinar as partes, minimizando sua influência. É o peso do todo que muitas vezes importa enxergar.

        Em relação ao espaço, a economia será o domínio do homem no seu conjunto ou mesmo o de um grupo, sua maneira mais ou menos ativa de conquistar e possuir; sem deixar de considerar o imprensamento da economia entre o social e a natureza. Braudel se propõe a mostrar como estas realidades variam umas em relação às outras na linha do tempo, como a ação oscila de um fator a outro e retorna ao seu passo ao longo dos anos e séculos, para depois oscilar novamente e retornar. A economia modela o social e o espaço, o espaço comanda a economia e o social, e o social por sua vez comanda as duas outras realidades. É um mundo de ações, reações e interações, "a sociedade na qual a geografia deveria estudar a ação sobre o solo, tendo já sofrido a ação deste mesmo solo". O homem é ao mesmo tempo causa e efeito, como uma pedra que ricocheteia na água indefinidamente10 .

        A geo-história, para Braudel, é a história que o meio impõe aos homens por suas constantes ou leves variações, sendo que muitas modificações são despercebidas ou negligenciadas na frágil e curta medida do homem. A geo-história é a história do homem na apreensão do seu espaço, lutando contra ele ao longo de sua dura vida de penas e esforços, conseguindo vencê-lo, mais ainda suportá-lo, à custa de trabalhos a serem sempre renovados. A geo-história é o estudo de um duplo vínculo, da natureza ao homem e do homem à natureza, o estudo de uma ação e de uma reação, misturadas, confusas, recomeçando sem cessar na realidade cotidiana. A qualidade e o volume deste esforço obrigam a inverter a abordagem habitual do geógrafo11 .

        A incorporação da geo-história em O Mediterrâneo se faz através de uma engenhosa divisão dos processos históricos segundo suas diferentes velocidades. O resultado são três partes, onde cada uma pretende explicar o conjunto. A primeira trata da história lenta, quase imóvel, do homem nas suas relações com o meio que o rodeia. Acima desta, desenvolve-se uma outra história com um ritmo menos lento, a história social, dos grupos e agrupamentos, onde entram as economias, os Estados e as sociedades. A terceira parte, por fim, é a história ‘tradicional’, do indivíduo, uma história de acontecimentos, da ‘agitação da superfície’, das ondas levantadas pelo poderoso movimento das marés, uma história com oscilações breves, rápidas e nervosas. Das três, ela é a mais apaixonante, e também a mais perigosa. Para Braudel, é necessário desconfiar desta história ainda quente, tal como os contemporâneos a sentiram, descreveram e viveram, segundo o ritmo de suas próprias vidas. Chega-se, assim, a uma decomposição da história em planos sobrepostos, distinguindo-se no tempo histórico um ‘tempo geográfico’, um ‘tempo social’ e um ‘tempo individual’12 .

        O tempo geográfico, do homem nas suas relações com o meio, é feito de lentas transformações, muitas vezes de retrocessos, de ciclos sempre recomeçados. É uma história quase fora do tempo, da relação com as coisas inanimadas. A geografia, para Braudel, torna-se um instrumento para encontrar as realidades estrutuais mais lentas e para organizar uma perspectiva segundo uma linha do mais longo prazo13 . Ele pretende utilizá-la de modo diferente das então tradicionais introduções geográficas à história, inutilmente lançadas no princípio de cada livro, com descrições do meio físico, das atividades agrícolas e das flores que se mostram rapidamente e depois não mais se fala, como se as flores não regressassem todas as primaveras, como se os rebanhos cessassem as suas migrações, como se os navios não navegassem em um mar real, que muda com as estações do ano14 .

        Deste modo, a primeira parte de O Mediterrâneo trata das penínsulas com suas montanhas, planaltos e planícies; dos mares com suas orlas e ilhas; dos confins mediterrânicos: o Saara, o Atlântico e os istmos; do clima e sua relação com a história; das rotas e das cidades, dos deslocamentos de populações e rebanhos. Tudo em busca das realidades estruturais mais lentas e do mais longo prazo.

        A história lenta, quase imóvel, dominada pelas permanências, foi novamente tematizada por Braudel sob o título de ‘longa duração’15 . Aí ele se lança em novos campos além da geo-história. Outros já a haviam estudado estas permanências, sem lhe darem este nome. Lucien Febvre dedicou-se a analisar a ‘ferramenta mental’ do pensamento francês na época de Rabelais, um conjunto de concepções que, bem antes de Rabelais e muito tempo depois dele, comandou as artes de viver, de pensar e de crer, e limitou duramente a aventura intelectual dos espíritos mais livres. A idéia de cruzada, estudada por Alphonse Dupront, permaneceu, atravessou sociedades e tocou os homens desde a Idade Média até o século XIX. Pierre Francastel assinala a permanência de um espaço pictural geométrico desde o Renascimento florentino até o cubismo, no início do século XX. O universo aristotélico se mantem quase sem contestação até Galileu.

        O gênio de Marx, o segredo de seu poder prolongado, segundo Braudel, deve-se ao fato de que ele foi o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais a partir da longa duração histórica. Esses modelos foram congelados na sua simplicidade ao lhes ser dado o valor de lei, de explicação prévia, automática, aplicável a todos os lugares, a todas as sociedades. Esses modelos podem ser adaptados, matizados por outras estruturas e definidos por outras regras e modelos. A poderosa análise social do marxismo pode reencontrar sua força na longa duração. O risco do marxismo é o mesmo de toda ciência social apaixonada pelo modelo em estado puro, o modelo pelo modelo16 .

        A longa duração estaria presente na Reforma Protestante e na Contra-Reforma Católica. Seria por acaso que a antiga fronteira do Império Romano — o Reno e o Danúbio – da velha Europa e da Europa recentemente ‘colonizada’, constituiu em grande parte a fronteira que dividiu o mundo católico e o mundo protestante? Não se nega à Reforma, pondera Braudel, razões puramente religiosas: a subida visível de águas espirituais em toda a Europa, que tornou o fiel atento aos abusos e às desordens da Igreja, e as insuficiências de uma devoção demasiado terra-a-terra, feita mais de gestos do que de verdadeiro fervor. Este sentimento, entretanto, toda a cristandade teria experimentado. Só que a velha Europa era mais apegada às suas tradições religiosas antigas, que a ligavam estreitamente a Roma. Por isso manteve o vínculo. A nova Europa, mais mesclada, mais jovem, menos apegada à sua hierarquia religiosa, consumou a ruptura. Uma reação nacional estava em curso17 .

        Depois de A Guerra dos Cem Anos, a cristandade teria sofrido o assalto de uma emersão de águas religiosas. Sob o peso destas águas, rompeu-se, como uma árvore estalando a casca. No norte, a Reforma se espalhou pela Alemanha, Polônia, Hungria, Península Escandinava e Grã-Bretanha. No sul, difundiu-se a Contra-Reforma e em seguida a civilização barroca18 .

        Nos movimentos que afetam a massa da história atual haveria uma fantástica herança do passado. O passado lambuza o tempo presente. Toda sociedade é atingida pelas águas do passado. Este movimento não é uma força consciente, é de certa forma inumana, o inconsciente da história. O passado, sobretudo o passado antigo, invade o presente e de certo modo toma nossa vida. Por mais que nos esforcemos, assevera Braudel, somos arrastados pela massa19 . O presente em grande parte é a presa de um passado que teima em sobreviver; e o passado, por suas regras, diferenças e semelhanças, é a chave indispensável para qualquer compreensão séria do tempo presente. Em geral, não há mudanças sociais rápidas. As próprias revoluções não seriam rupturas totais20 .

        A história voltada para este passado distante que persiste, também chamada história estrutural, está sob o signo da duração, da repetição e da insistência. A estrutura em questão não é a mesma do estruturalismo, onde se trata de um sistema de relações abstratas. Para a história, ‘estrutura’ seria o que na massa de uma sociedade resiste ao tempo, perdura, escapa das vicissitudes e sobrevive com obstinação e sucesso. A imobilidade da estrutura, entretanto, não é absoluta. Ela é imóvel em relação a tudo que evolui ao seu redor mais ou menos depressa. A estrutura está sujeita a rupturas, porém muito afastadas umas das outras no tempo. As rupturas, por mais importantes que sejam, nunca afetariam toda a arquitetura estrutural de uma sociedade, pois nem tudo se quebra de um só golpe.

        A história estrutural faz parte da história global, que é a dialética permanente entre estrutura e não-estrutura, entre permanência e mudança. A história seria não só o que muda, como pensava Marc Bloch, mas também o que não muda. Uma revolução tão profunda quanto a Francesa está longe de ter mudado tudo de um dia para outro. A mudança sempre compõe com a não-mudança. Assim como as águas de um rio condenado a correr entre duas margens, passando por ilhas, bancos de areia e obstáculo, a mudança é surpreendida numa cilada. Se consegue suprimir parte considerável do passado, é necessário que esta parte não tenha uma resistência forte demais e que já esteja desgastada por si mesma. A mudança adere à não-mudança, segue suas fragilidades e utiliza suas linhas de menor resistência. Ao lado de querelas e conflitos, há compromissos, coexistências e ajustes.

        Na divisão constante entre o a favor e o contra, há, de um lado, o que se move; do outro, o que teima em ficar no mesmo lugar. Para Braudel e o grupo dos Annales, a história é globalidade, ou seja, uma grande orquestração. A dificuldade residiria em incorporar-lhe a massa inconsciente dessa história oceânica, originária de um passado inesgotável ao mesmo tempo difícil de perceber e impossível de dominar. Nesse âmbito das profundezas, seria irrisório dizer que o homem faz a história; ele a sofre21 . A história global é uma história abastecida por todas as ciências do homem, em permanente interdisciplinariedade. Não se trata somente de escolher uma e se “casar” com ela, mas de viver em “concubinato” com todas as ciências do homem22 .

        À longa duração, Braudel associa o conceito de ‘civilização’. A civilização é uma encarnação e uma amostra da própria longa duração. Surgido no século XVIII, o conceito de civilização logo vai se opor à barbárie. Posteriormente, Marcel Mauss afirma que civilização são “todas as conquistas humanas”. Existindo tanto no singular quanto no plural, civilização é o bem comum partilhado, ainda que desigualmente, por todas as civilizações; é “aquilo que o homem não esquece mais”. O fogo, a escrita, o cálculo, a domesticação das plantas e dos animais, já não se ligam mais a uma origem particular e se tornaram bens coletivos da civilização23 . E é interessante notar que, depois da Segunda Guerra Mundial, a revista Annales muda de título, incorporando: economias, sociedades, civilizações.

        As civilizações do Mediterrâneo são para Braudel personagens complexos e contraditórios. Elas possuem determinadas qualidades, e qualidades opostas: são fraternas, liberais, e ao mesmo tempo exclusivas e caprichosas; visitam as outras e são por elas visitadas; são pacíficas e guerreiras; rigidamente fixas e ao mesmo tempo móveis e vagabundas. São como as dunas, agarradas aos acidentes encobertos do solo: os seus grãos de areia voam, vêm, vão e se aglomeram ao sabor dos ventos, mas os inumeráveis movimentos têm uma soma imóvel, e a duna continua lá.

        Nelas se encontram estrutura e conjuntura, instante e duração, e duração muito longa. Uma civilização não consegue ‘beliscar’ sensivelmente o domínio da outra, ainda que use de força bruta ou do ensino amplamente difundido. No fundo, os jogos são realizados antecipadamente. A África do Norte, nas lutas de independência, não teria ‘traído’ o ocidente em 1962, mas desde o século 8º, com a fé islâmica, ou talvez até antes de Cristo, com a fundação de Cartago, filha do Oriente. Mobilidade e imobilidade acompanham-nas, interagindo. E ambas permitem a abordagem das civilizações, até mesmo a ‘poeira’ de acontecimentos e os incidentes presentes em qualquer civilização viva24 .

        As civilizações em relação às outras são capazes de dar, receber, emprestar e recusar. É também seu destino ‘partilharem-se’ a si próprias, como dizia M. Foucault, operando-se a si mesmas e deixando para trás parte de suas heranças e bagagens. Incessantemente, toda civilização herda de si própria e escolhe os bens que os pais legam aos filhos25 . Dentro da civilização, o homem goza de liberdade. Ele e seus bens materiais e espirituais podem empreender escaladas, realizar transferências e vencer entraves, mas apenas individualmente. Tratando-se de um grupo ou de uma massa social, o movimento é mais difícil. Uma civilização não se desloca com toda a sua bagagem. Atravessando a fronteira, o indivíduo se expatria. Ele ‘trai’, deixando para trás a sua civilização, abandonando-a. A civilização é ao mesmo tempo o paraíso e o inferno dos homens26 .

        A longa duração também atinge a vida material e a história econômica. Para abordar as realidades estruturais neste campo, Braudel usou o conceito alemão de weltwitschaft, ‘economia-mundo’, que são regiões do planeta integradas pela atividade econômica, formando uma espécie de todo. Ele é útil para explicar a dinâmica do capitalismo. A história econômica mostra certos limites e o poder do homem em determinada época, assim como a ‘ferramenta mental’ de Febvre ao estudar Rabelais mostra as possibilidades e o nível intelectual do século XVI27 .


Conclusão


        Quais podem ser as contribuições teóricas da obra de Braudel para as questões sócio-ambientais e culturais? Se a economia de fato está ‘imprensada’ entre o meio e a sociedade, com os desdobramentos das últimas cinco décadas, os limites do meio ambiente estão cada vez mais próximos e a sociedade está cada vez mais sensível à urgência de preservar o planeta. A geo-história humana precisar superar o nível da apreensão do espaço disponível para o seu uso não-predatório. O desenvolvimento sustentável é uma forma de geo-história voltada o futuro, um futuro sem colapso.

        Como o planeta diz respeito a toda a humanidade, é inevitável o encontro de culturas para pensar o meio ambiente, propor alternativas e chegar a um denominador comum, uma agenda mínima. Este âmbito do conhecimento é inevitavelmente interdisciplinar, prestando-se a “um concubinato entre todas as ciências do homem” e todas as ciências da natureza.

        Se a mudança compõe com a não-mudança, segue suas fragilidades e utiliza suas linhas de menor resistência, cabe descobrir onde estão as fragilidades do éthos capitalista e de sua racionalidade instrumental, tantas vezes devastadora. Cartago resiste ao Ocidente há mais de dois mil anos. Nas diversas identidades culturais, não será possível descobrir uma longa duração da contemplação e do apreço pela natureza, fonte abundante para os valores do desenvolvimento sustentável? As ferramentas teóricas de Braudel são um aporte relevante.


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1Doutor em História pela UnB e professor do Departamento de Serviço Social da PUC-RIO.
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3SIQUEIRA, Josafá Carlos de. Meio ambiente e desenvolvimento sustentável: avanços e recuos no processo de consolidação entre o social e o ambiental. In: FONSECA, D.; SIQUEIRA, J., op. cit., pp. 107-113.
4FONSECA, Denise Pini Rosalem da. Identidade cultural e desenvolvimento: uma experiência comunitária de sucesso. In: FONSECA, D.; SIQUEIRA, J., ibidem, pp. 169-184.
5FONSECA, Denise. Discutindo os termos de uma equação de congruências: cultura e desenvolvimento sustentável. Texto mimeografado, 2004, pp. 1-11.
6CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. 3 vols. O poder da identidade. Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 1999, pp. 418-427.
7GUIOMAR, Jean-Yves. Le ‘Tableau de la geographie de la France’ de Vidal de La Blache. In: NORA, Pierre (org.). Lieux de mémoire. 3 vol. Paris: Quarto Gallimard, 1997, pp. 1073-1097.
8REIS, José Carlos. A escola dos Annales. São Paulo: Paz e terra, 2000, pp. 61-62.
9BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. 2 vols. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
10 Les écrits de Fernand Braudel. Vol. II. Les ambitions de l’histoire. Paris: Fallois, 1997, pp. 63-64.
11Ibidem, 73.
12 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo... Vol.I, op.cit., pp. 25-26.
13 Ibidem, p. 33.
14 Ibidem, p. 25.
15 BRAUDEL, F. História e ciências sociais. A longa duração. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992, pp. 41-78.
16 Ibidem, pp. 75-76.
17 BRAUDEL, F. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 324.
18 Idem, O Mediterrâneo..., vol. II, op.cit., p. 127.
19 Idem, entrevista a J. C. Bringuier. In: DAIX, Pierre. Fernand Braudel: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 457 e 646.
20 BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Vol. III. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 10 e 50.
21 BRAUDEL, F. Reflexões sobre a história. São Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 356-357.
22 Une Leçon d’histoire de Fernand Braudel: Chateauvallon / octobre 1985. Paris: Arthaud, 1986, p. 162.
23 BRAUDEL, F. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989, pp. 25-29.
24 Idem. O Mediterrâneo... vol. II, op. cit., pp. 119-120.
25 Ibidem, pp. 126 e 185.
26 Ibidem, pp. 132 e 188.
27 Idem. O Mediterrâneo... Vol. I, op. cit., p. 401.